sábado, 4 de janeiro de 2014

Paciência

"Era uma vez um faminto. Passando um dia diante de uma  morada  singularmente grande, ele se dirigiu às pessoas que se aglomeravam nos degraus da escadaria, perguntando  a quem pertencia aquele palácio. "A um rei dos povos, o mais poderoso do Universo" responderam. O faminto foi então até os guardiões postados no pórtico de entrada e pediu uma esmola em nome de Deus. "Donde vens tu?" perguntaram os guardiões, "então não sabes que basta te apresentares ao nosso amo e senhor para  teres  tudo quanto desejas?" Animado pela resposta, o faminto, embora um tanto ressabiado, transpôs o pórtico, atravessou o pátio espaçoso que se seguia à entrada, assim como o jardim sombreado de vigorosas árvores, e logo alcançou o interior do palácio, passando de aposento em aposento,  todos  grandes,  de  paredes muito altas, mas despojados de qualquer mobília; sem se deixar perder no labirinto daquela estranha moradia, ele acabou por chegar a uma ampla sala revestida de azulejos decorados com desenhos de flores e folhagens que compunham agradavelmente com a enorme taça de alabastro plantada no meio da peça, de onde jorrava água fresca e docemente rumorejante; um tapete de veludo  bordado  com  arabescos  cobria parte desta sala, onde, recostado em almofadas, estava sentado um ancião de suaves barbas brancas, a face iluminada por um sorriso benigno. O faminto avançou para o ancião de barbas formosas, saudando-o:-Que a paz esteja contigo!" "E contigo a paz, a misericórdia e as bênçãos de Deus!" respondeu o ancião inclinando ligeiramente a fronte. "Que desejas, pobre homem?" "Ó meu senhor e amo, peço- te uma esmola em nome de Deus, pois estou tão necessitado a ponto de cair de fome." "Por Deus!" exclamou o ancião "é possível que eu esteja numa cidade onde um ser humano tenha fome como dizes? É intolerável!" "Que Deus te abençoe e abençoada seja tua santa mãe" disse o faminto  em  reconhecimento  aos sentimentos do ancião. "Fica aqui, pobre homem, quero repartir contigo o pão e que te sirvas do sal da minha mesa." E logo o ancião bateu palmas e ao jovem serviçal que se apresentou ordenou que trouxesse o gomil com a bacia. E disse pouco depois para o faminto: "Hóspede amigo, chega-te mais perto e lava as mãos." E o próprio ancião levantou-se, dobrou o corpo para a frente, e fez com nobreza o gesto de esfregar as mãos debaixo da água que era supostamente derramada de um gomil invisível. O faminto ficou sem saber o que pensar da encenação que seus olhos viam e, como o ancião insistisse, ele deu dois passos e fez também de conta que lavava as mãos.  "Ponham a toalha. Depressa!" ordenou o ancião aos servidores "e não demorem em trazer-nos o que comer, que este pobre homem está quase a desfalecer de fome." Vários servos começaram a ir e vir, como se pusessem a mesa e a cobrissem com numerosos pratos. O faminto, dobrando-se de dor, pensou com seus botões que os pobres deviam mostrar muita paciência diante dos caprichos dos poderosos, abstendo-se por isso de dar mostras de irritação. "Senta-te a meu lado" disse o ancião "e trata de honrar a minha mesa." "Ouço e obedeço" disse o faminto sentando-se no tapete ao lado do ancião, frente à mesa imaginária. "Senhor meu hóspede, minha casa é a tua casa e minha mesa é a tua mesa. Não faças cerimônia, come enquanto estiveres no apetite." E como o ancião o estimulasse a acompanhá- lo, o faminto não se fez esperar, logo simulando também tocar nos supostos pratos, espetar bons nacos, e, movendo o queixo, mastigar e engolir a comida inexistente. "Que me dizes deste pão?" perguntou o ancião. "Este pão é bem alvo e muito bom, nunca na vida comi outro que mais me soubesse" respondeu prontamente o faminto, sem forçar sua gentileza. "Que prazer tu me dás, ó senhor meu hóspede! Mas penso que não mereço esses elogios, senão que dirás tu das iguarias que estão à tua esquerda, este assado com recheio de arroz e amêndoas, este peixe em molho de gergelim, ou estas costelas de carneiro! E que dirás do aroma?" "O aroma é embriagador tanto quanto o aspecto e o paladar divinos." "Não posso deixar de reconhecer que o senhor meu hóspede está animado da maior indulgência para com a minha mesa, por isso mesmo vais provar agora da minha própria mão um bocado incomparável" disse o ancião, simulando tirar  entre  as  pontas  dos  dedos  um bocado da travessa e chega-lo aos lábios do faminto, dizendo: "Deves mastigar bem!" O faminto estendeu os lábios para que o bocado lhe fosse introduzido na boca, mastigando-o bastante em seguida, fechando até os olhos de deleite para dar maior realidade à sua representação: "Excelente!" exclamou em acabamento. "Ó meu hóspede amigo, pelo modo como falas bem se vê que és pessoa de gosto, habituado a comer à mesa de príncipes e de grandes; come mais, e que te faça bom proveito." "Estou satisfeito, já provei de todos os pratos, não posso mais" disse o faminto sorrindo em agradecimento, e mal contendo as dores da sua terrível fome. O ancião então bateu palmas e quando vieram os servos disse: "Podem trazer a sobremesa." Os jovens servos romperam numa azáfama, agitando os braços em gestos variados e com certo ritmo, depois de tantos outros rápidos e precisos que significavam levantar uma toalha e pôr outra, embora nada fosse mudado. Finalmente o ancião ergueu a mão e eles se retiraram. "Dulcifique-mo-nos" disse o ancião com algum preciosismo "vãos aos doces: esta torta empolada de nozes e oas, com certo ar épico, parece muito capaz de nos tentar. Prova um bocado, hóspede amigo, é  em  tua  honra  que  ela  há  de  ser partida. Tens aqui a calda almiscarada, talvez queiras mesmo polvilhá-la. . . Come, come, não faças cerimônia." E o ancião   dava   o   exemplo,   imolando colherada sobre colherada, com apetite e requinte, numa encenação tão perfeita, como se saboreasse uma torta de verdade. E o faminto o imitava com arte embora a fome mais do que nunca lhe contraísse o estômago. "Geléias? Frutas? Tens aqui tâmaras secas, tâmaras em licor, passas.. . De que é que mais gostas? Por mim prefiro a fruta seca à fruta preparada pelo confeiteiro, não se perdeu o sabor nativo.  Tens  de  provar  também  esses figos acabados de colher da árvore. Não? E os pêssegos? Talvez prefiras ameixas. . . Tens aqui, come, come, Deus é clemente com os humanos!" O faminto, que à força de mastigar em falso tinha a boca e a língua e os maxilares cansados, ao passo que o estômago lhe gritava cada vez mais alto, respondeu à insistência continuada do ancião: "Estou satisfeito, senhor, não quero mais nada!" "É estranho! Pela fome que te trouxe até aqui, hóspede amigo, admira que te saciastes tão depressa; de qualquer forma, foi uma honra dividir minha mesa contigo. Mas ainda não bebemos. . ." disse o ancião com um leve traço de zomba lhe percorrendo os lábios, e logo bateu palmas e a esse sinal acorreram adolescentes de braços graciosos em suas túnicas claras, e simularam levantar a toalha, pôr outra, e plantar em cima taças e copos de toda a ordem. E o anfitrião, encenando sempre, encheu as taças, oferecendo uma ao faminto que a recebeu com vênia amável, levando-a em seguida aos lábios: "Que vinho sublime!" exclamou ele fechando de novo os olhos e estalando a língua. E mais vinho foi derramado nas taças, e outros supostos vinhos   foram   trazidos,   de   muitas espécies e sabores. Um e outro entremeavam a consumação, entregando-se ao jogo instável dos embriagados, pendulando lentamente a cabeça e o meio- corpo, além de muitos outros trejeitos, até que todas as garrafas fossem provadas. E depois de ter deitado tanto vinho nos copos, o ancião interrompeu subitamente a falsa bebedeira, e, assumindo sua antiga simplicidade, a fisionomia de repente austera, falou com sobriedade ao faminto com quem dividira imaginariamente sua mesa: "Finalmente, à força de procurar muito pelo mundo todo, acabei por encontrar um homem que tem o espírito forte, o caráter firme, e que, sobretudo, revelou possuir a maior das virtudes de que um homem é capaz: a paciência. Por tuas qualidades raras, passas doravante a morar nesta casa tão grande e tão despojada de habitantes, e está certo de que alimento não te há de faltar à mesa." E naquele mesmo instante trouxeram pão, um pão robusto e verdadeiro, e o faminto, graças à sua paciência, nunca mais soube o que era fome [...]”

- Lavoura Arcaica - Raduan Nassar (Capítulo 13)

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